As frágeis relações de trabalho no Brasil: uma bomba relógio social

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No Brasil, especialmente durante o Século XX, as relações de trabalho fundamentalmente ocorriam com base na relação de emprego descrita nos artigos 2º e 3º da CLT.

Isso ocorria, de uma forma geral, pelo amplo desenvolvimento da industrialização promovida desde o Governo do Presidente Getúlio Vargas. Nesse sentido, existia a relação que envolvia os elementos previstos na CLT, quais sejam: trabalho assalariado, de forma pessoal, não eventual e mediante subordinação a um empregador como premente.

De 1979 até o tempo presente, por imitação das políticas neoliberais dos Governos de Margaret Thatcher (Primeira Ministra do Reino Unido de 1979 a 1990) e do Presidente Ronald Reagan cujo mandato como Presidente dos EUA coincidiu com Thatcher, de 1981 até 1989, o Brasil sofreu amplo processo de desindustrialização e de retorno a lógica de um país agrário, desta vez como produtor de soja, gado, porco e frango para exportação.

Iniciando no mesmo período, porém caminhando até os dias de hoje, ressurgiu a milenar China, abrindo suas portas às relações de comércio global e crescendo vertiginosamente nesses mais de 30 anos. A Ásia, de uma forma geral, passou a concentrar os empregos até então ocidentais.

Durante esse período, a lógica do trabalho precário, terceirizado, quarteirizado, de “bico”, substituiu a mão de obra especializada da área industrial.

O Brasil parou no tempo anterior ao Governo Vargas, porém com uma roupagem de “moderno”, diante das novas tecnologias que chegavam ao campo, e também aos tecnológicos bens de consumo que atendiam aos desejos da classe média.

Essa combinação perversa de desindustrialização, concentração de renda dos novos barões do agronegócio, do financismo volátil que proporciona intenso fluxo de capital pelo globo, causou a destruição das relações de emprego, especialmente nos grandes centros industriais brasileiros, e porque não dizer no ocidente.

Especialmente nos anos 80 do Século XX, até o presente momento, as relações de trabalho perderam a característica do trabalho clássico, aquele realizado em ambiente fabril, coletivo, com ampla participação de sindicatos na representação de trabalhadores, para relações forjadas pelo neoliberalismo como “modernas”, nas quais os trabalhadores foram denominados como “colaboradores”, “empreendedores”, “donos do próprio negócio” etc. É o que Antunes (2018) denominou como “uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo”.

Desta maneira, aquele trabalhador forjado na indústria brasileira não mais podia amparar seus filhos e filhas para um futuro melhor.

O desemprego de milhões passou a ser a realidade brasileira.

Devemos considerar que até o advento da denominada Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017) houve um processo de demonização e desconstrução do Direito do Trabalho no Brasil.

Esse processo iniciou-se nas chamadas Revoluções Hibridas e Coloridas que se iniciaram, em uma análise superficial, na Primavera árabe e no Brasil a partir das manifestações antipetistas que arrastou o sistema sindical junto.

A partir destas manifestações houve uma simbiose de grupos neofascistas com a política tradicional, gerando projetos com “Ponte para o futuro “ do MDB.

Com a tomada de poder por Michel Temer, em conjunto com estes movimentos, iniciou-se o desmonte do Direito do Trabalho e aventou-se o fim da própria Justiça do Trabalho durante o mandato de Michel Temer e de Bolsonaro.

Desta forma, Direito do Trabalho, sindicatos, CLT, dentre outros, foram alvos de ataques publicitários por meios oficiais, e por este grupo já acima identificado durante todos esses anos. “Modernização”, “ reforma não extinguiu nenhum direito”, “imposto sindical sustenta vagabundos (sic) ” foram adjetivos utilizados na narrativa que atingiu todo o sistema trabalhista.

A contrarreforma espanhola e o desemprego no Brasil confirmaram a inutilidade da reforma trabalhista como foi vendida, e a direção dos ventos mudou um pouco, mas ainda há muita desinformação e resistência daqueles que lucraram com a reforma trabalhista.

Como se sabe, empregos são criados a partir de política econômica e demanda. Podemos retirar todos os direitos trabalhistas sem criar um único novo posto de trabalho se não houver demanda decorrente de política econômica.

A reforma, bem como todas as tentativas bem-sucedidas ou não, de aprofundamento desta, fundamentaram-se em três eixos:

  1. A) RESTRIÇÃO DE DIREITOS

O primeiro deles é o que restringe direitos dos trabalhadores: sob pretexto de combate ao desemprego (intervalo indenizatório, fim das horas in itinere, banco de horas inclusive para jornada de 12 horas, contrato intermitente, ampliação de salário in natura etc.);

  1. B) RESTRIÇÃO DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

O segundo eixo é aquele que restringe a atuação do judiciário. Por exemplo, na MP 1045 havia a proibição de juízes analisarem e modificarem cláusulas de acordo extrajudicial. Na reforma trabalhista há o engessamento da edição de Súmulas pelo TST (e aqui uma contradição, pois Súmulas nos aproximam de segurança jurídica propalada e é inspirada na Common Law – vide Súmula vinculante do STF);

Observe-se que o artigo 5º. inciso XXXV da Constituição garante: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. É secular no Direito Civil a apreciação por juízes de vícios no negócio jurídico.

  1. C) IMPOSIÇÃO DE CUSTAS, HONORÁRIOS E DESPESAS PROCESSUAIS

O terceiro eixo consiste em impor alta sucumbência, custas processuais e prova negativa de condição financeira para alcançar o benefício da justiça gratuita. O trabalhador tem que provar não ter recursos. Mesmo que o Código de Processo Civil diga o contrário.

Além disso, o piso de 40% sobre o teto do INSS para conseguir a Justiça Gratuita, conforme artigo 790, A, da CLT. Ou seja, tem direito o trabalhador que tem salário igual ou inferior a 40% (R$2.831,00) do teto de benefícios do INSS, que é de R$7.078,00, mostra-se draconiano.

Fazer prova negativa de insuficiência, devassando a vida financeira é inconstitucional e fere o sigilo bancário, financeiro, honra e intimidade do trabalhador. É humilhante.

Ao mesmo tempo, a reforma imobilizou o sistema de representação sindical, foi cerceado o direito de ação do trabalhador na Justiça do Trabalho, promoveu-se blindagem de maus pagadores, consolidou-se como lei jurisprudência vencida, imunizou como se fosse verba indenizatória verbas salariais, causando assim prejuízo ao trabalhador e ao INSS, dentre outras medidas.

Na mídia, de forma geral, apenas foram alardeados pontos de pouco impacto e de boa aceitação ao público: divisão de férias, teletrabalho, e outros temas aparentemente simpáticos e “modernos”, ainda que a jurisprudência trabalhista já os aceitassem como possíveis.

Desta maneira, com a reforma trabalhista em consonância com a proletarização de serviços, surgiram as figuras dos trabalhadores “uberizados”, “pejotizados”, “flexíveis”, “zerados”, intermitentes” etc.

No Brasil, com a desindustrialização combinada com a crise de exportação de commodities a partir de 2013, e consequente baixa de preços, houve também o aumento da massa de desempregados e desocupados, que segundo o PNAD alcançou níveis próximos a 14 milhões de desempregados recentemente.

Essa imensidão de desempregados, em particular filhos de operários em centros urbanos, abriga-se exatamente em trabalhos de características individualizadas e autônomas.

Desta forma, o serviço de transportes de pessoas e alimentos com a intermediação de aplicativos, dentre outras atividades, passou a ser quase que único abrigo para estes trabalhadores.

É exatamente neste tipo de relação de trabalho, fora do ambiente coletivo, extremamente individualizado, sem qualquer garantia social, que avançou a precarização da relação humana de trabalho.

Nesse sentido, o “cada um por si”, e o trabalho no qual o trabalhador labora com o próprio meio de produção (carro, bicicleta, motocicleta, peruas etc.) serve apenas para alcançar pouca verba alimentar para o trabalhador e família.

Aqui temos o trabalhador individualmente arrastado pela gravidade do massivo buraco negro da atual estrutura do capitalismo presente nos países periféricos como o Brasil.

A proletarização dos serviços já se tornou parte integrante da lógica do custo produção global com reflexos internos no Brasil. Um dos impactos mais sensíveis é a incapacidade do trabalhador de consumir, planejar a longo prazo e estudar.

Não é de se estranhar que nossas instituições democráticas venham legitimando a lógica global deste tipo de trabalho, negando-lhes reconhecimento de relação de emprego, pondo e dispondo do fator de produção de horas de trabalho em forma de banco de horas quando milagrosamente havidos como empregados, negando-lhes assistencial médica e social, como exemplos.

O grande perigo que reside nesta situação, e que pode afetar a democracia, é que grande da massa proletária urbana pode entender que não conseguirá vencer seguindo as regras do utópico jogo democrático.

Em outras palavras, poderá ser entendido, em algum momento, que simplesmente essa vida não vale a pena. Não se projeta crescimento, estudo, moradia, vida afetiva, porque se corre todo o tempo atrás da hora/trabalho para sobreviver.

A diluição do sentido do coletivo na busca de uma perspectiva concreta de futuro pode ter um custo maior do que o sentido do coletivo oriundo do totalitarismo/fascismo/criminalidade.

O solapamento do escape sindical contribuiu para que estes trabalhadores simplesmente ficassem à mingua de qualquer representatividade. Observe-se que nada foi proposto para substituir a estrutura sindical, que permanece vulnerável à força do capital.

Paradoxalmente, com a reforma trabalhista, foi defendida pelos agentes políticos a ideia de que o negociado teria prevalência sobre o legislado, mas não existirá nenhum modelo de negociação factível sem que exista uma representação coletiva adequada.

Observamos em Humberto Eco (2018), ao abordar o fenômeno do fascismo que este também advém de frustração social ou individual. Ainda explica que uma das características do fascismo italiano é o “apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política (…). ” E mais, para aqueles que se enxergam privados de qualquer identidade social: (…) o privilégio mais comum de todos: “ter nascido em um mesmo país”.

Aparece aí a figura fascista do nacionalismo exacerbado e odiento, e altamente manipulável como temos agora no país.

Entendemos que uma política essencialmente de mercado desmantelou o arremedo de sonho do estado de bem-estar social, porém se socorre em todas as crises do estado que quer destruir.

Há uma estrutura de ódio político e social que se retroalimenta fortemente deste mecanismo de precarização. A massa proletária tende a agir para o lado que melhor lhe dê abrigo, mesmo que apenas retórico ou emocional.

Essa forma de pensar o desenvolvimento do trabalho humano apenas como mero fator de produção é exatamente este mecanismo o qual nos referimos, que uma vez acionado por algo inimaginável, é também instrumento para enfraquecimento do estado democrático liberal.

Este quadro já se apresenta em alguns exemplos como presente, em razão da existência de quadrilhas transnacionais e milícias, estas também infiltradas no ambiente político e social.

Entendemos que existem novas relações de trabalho autônomo, já bem descritas no Código Civil, e não há interesse em qualquer engessamento destas atividades. Por seu turno, entendemos como fundamental trazer novamente ao país relações de emprego estáveis, clássicas, que ainda existem em milhões no trabalho fabril e de serviços.

Nem todas as relações de trabalho no mundo são relações 4.0 ou de teletrabalho. Essas existem, especialmente quanto ao trabalho intelectual, mas o trabalho fabril e de serviços humanos ainda existem globalmente, só não habitam o Brasil.

Mas é certo que somente relações de trabalho estáveis alavancam crescimento econômico de longo prazo.

Portanto, resta clara a necessidade de reverter esse quadro de desalento, e a legislação trabalhista é uma das pontas de um plano eficaz de desenvolvimento, bem como uma política tributária que desonere emprego e salário, valorizando a contratação formal de trabalhadores.

Entendemos fundamental para estruturar as relações de trabalho:

Revogar temas que se encontram com ação direta de inconstitucionalidade no STF;

Rever o patamar para concessão de Justiça Gratuita;

Criar mecanismo de financiamento sindical;

Rever a forma de cobrança de honorários na Justiça do Trabalho, considerando tanto a importância da representação por advogado como a capacidade de pagamento do trabalhador;

Revogar a necessidade de indicação de valor na Petição Inicial trabalhista, pois além da dificuldade técnica de apresentação de valores, dificulta a conciliação em razão das expectativas de ganhos geradas nos trabalhadores;

Até a criação de Convenção Internacional para trabalhadores intermediados por aplicativos, estabelecer patamares de higiene, segurança e de ganhos compatíveis com o Princípio da Dignidade de Pessoa Humana, conforme garante nossa Constituição;

Ampliar o contrato de estágio, simplificando a relação contratual e incentivar a contratação de estagiários;Entendemos fundamental desonerar a folha de pagamento e rever a tabela de imposto de renda para fomentar a formalização de contratos de trabalho;

Liberar as relações de trabalho de trabalhadores hiperssuficientes a diversas formas contratuais, tornando o contrato de emprego tradicional celetista apenas optativo.

Valorizar as medidas de fiscalização, higiene e segurança no trabalho;

Promover a igualdade e o ambiente de trabalho livre de assédio;

Fortalecer a negociação coletiva;

Criar um capítulo versando sobre a legislação aplicável ao empregador de pequeno porte, entendendo que este deve ser liberado de burocracias para se dedicar especialmente a sua atividade empresarial;

Ampliar a competência da Justiça do Trabalho aproveitando sua estrutura para execução ampla de contribuições previdenciárias;

Entregar ao Brasil um novo Código do Trabalho, inclusive abrangendo processo do Trabalho.

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SOBRE MIM

Cassio Faeddo

Cassio Faeddo

Advogado. Mestre em Direito. MBA em Relações Internacionais FGV SP

Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

Especialista em Direito Público internacional e Relações internacionais.

Professor universitário desde 1998 tendo lecionado nas Faculdades Hebraico Brasileira Renascença, Anhembi-Morumbi, Unibero e Centro Universitário SENAC.

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